Secretaria Municipal da Saúde
Residências Terapêuticas devolvem um lar a pacientes psiquiátricos

As moradoras Marina e Ângela com a acompanhante comunitária Andreia, ao centro (Foto: Acervo/SMS)
Uma alameda no Alto da Lapa abriga há 20 anos a primeira residência terapêutica da capital. Na casa antiga e espaçosa com três quartos, sala de estar e jantar, cozinha, banheiro, lavanderia, terraço, jardim, garagem, quintal com edícula e uma churrasqueira vivem oito mulheres e duas gatas, Benê e Florzinha, filhas da última ninhada da Costelinha, que por sua vez também viveu com elas por 20 anos, até março deste ano.
Seis destas senhoras, Marina (65), Terezinha (68), Maria Rufina (87), Luiza (71) e duas Marias do Carmo: a Carminha (87) e a Borges (71), vivem neste endereço há duas décadas, desde a inauguração do Serviço de Residência Terapêutica (SRT), a primeira experiência de São Paulo no contexto da reforma psiquiátrica.
Ao longo destas duas décadas, elas perderam as contemporâneas Aurea e Mirtes, e receberam em seu lugar Severiana (77) e Ângela (51), que é a mais nova do grupo em idade e tempo de casa, 10 anos. No último dia 4 de maio, elas também perderam Dolores, a primeira acompanhante comunitária das senhoras, que ajudou a dar à casa o sentido de lar. Dolores se foi aos 68, vítima de um câncer.
“A gente gostava muito dela. Ela era muito boa, tinha carinho”, diz dona Marina, uma das primeiras moradoras a sair do Charcot.
Em 2004, o Hospital Psiquiátrico Charcot, que funcionou de 1941 a 2008 na Vila Liviero, zona sul da capital, foi interditado pelo Ministério Público por impor condições sub-humanas aos pacientes. A grande maioria já tinha perdido os vínculos familiares e sociais e precisava de suporte.
Nascia assim o que hoje é o Serviço Residencial Terapêutico (SRT) da capital, que recebe egressos do sistema manicomial e funciona como uma república para pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, resgatando autonomia, qualidade de vida, reestabelecendo laços e o cotidiano e criando novos vínculos.
No SRT Lapa 1, uma equipe de 15 acompanhantes e duas técnicas de enfermagem atua ininterruptamente numa escala de 12 por 36 horas, para oferecer suporte às moradoras da casa, tanto para acompanhar os processos do envelhecimento quanto para monitorar questões clínicas. O serviço também tem supervisão da terapeuta ocupacional Carla Cristina do Nascimento, cuja prática profissional, desde sua formação, é voltada à saúde mental no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira, na reabilitação psicossocial e na implementação da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) na capital.
O município de São Paulo conta hoje com 73 SRTs vinculados aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), onde vivem 688 pessoas. São oito casas na região Oeste, 13 na Sudeste, 16 na Norte, 17 na região Leste, outras 18 casas na Sul e uma no Centro.
“Hoje, os serviços de residência terapêutica vêm com a missão de acolhida das pessoas que ficaram longos anos em instituições psiquiátricas e esta casa, em especial, tem a peculiaridade da temática do envelhecimento. O nosso país agora está descobrindo o que é o envelhecer, as necessidades do cuidado com o idoso. O Brasil não era um país de idosos e elas estão fazendo parte de mais essa história, com demandas clínicas da própria idade”, comenta a supervisora Carla.
Dona Maria Rufina, por exemplo, tem certidão tardia. Era conhecida apenas como “Maria Preta”, de origem desconhecida. E apesar de o novo documento providenciado pela equipe apontar 87 anos, os seus relatos da vida na Bahia e de coisas que ouviu sobre o período da escravidão fazem acreditar que ela seja quase centenária.
Dona Maria Rufina não enxerga direito e depende de cuidados para a higiene pessoal, enquanto dona Severiana encontra-se na cadeira de rodas e recebe alimentação nasoenteral após três AVCs; duas outras moradoras tiveram dengue e ficaram em estado grave. “Inclusive as acompanhantes que vieram para cá logo no início, envelheceram também, como foi o caso da Dolores, que veio para casa aos 47 anos e morreu aos 68”, acrescenta a supervisora, ao que, na mesa do café, dona Marina balança a cabeça e diz: “eu estou muito sentida, a Dolores faria 69 anos em julho”, relembra.
Contudo, a velhice também trouxe uma cumplicidade ainda maior entre as moradoras, que se preocupam uma com as outras e também discutem e brigam menos. Na rotina da casa, elas fazem rodas de conversa para escolher passeios, organizam eventos especiais como churrascos no quintal, compram presentes para as aniversariantes e até viagem para a praia já fizeram juntas.
Carla ressalta que a ideia da residência terapêutica é a reprodução de uma casa comum. “Elas já viveram no ambiente sob pressão das regras, da imposição horários, dos remédios, da alimentação e infelizmente, muitas vezes, dos maus-tratos. Agora, aqui, é a casa delas.”
No dia-a-dia do SRT Lapa 1 cada uma tem seus hábitos, e as acompanhantes têm a função de promover esse resgate da vida comum. Marina gosta de acordar cedo e varrer a casa. Luiza passa o café de manhã e à tarde. Dona Terezinha acorda meio-dia e reclama que o pão está meio murcho, mas é a responsável por lavar a louça do almoço, enquanto dona Maria do Carmo Borges lava a do jantar. Quando mais novas elas faziam tudo praticamente sozinhas, cozinhavam todas as refeições, cuidavam das roupas e da casa.
As acompanhantes estão presentes o tempo todo, validando a inclusão social: vão com as idosas à padaria, ao mercado, à igreja, às compras na Lapa, ao cinema, aos eventos do Caps e ao salão de beleza. Elas também frequentam as casas dos vizinhos de longa data e são populares no bairro.
Entre talentos, Ângela, a mais nova, adora cantar um karaokê. Luiza é a modelista, mas é preciso vigiar porque ela transforma lençóis, toalhas e panos de prato em roupas, que costura à mão e crochê. Quando mais nova, dona Severiana bordava muito bem.
Uma paixão comum entre as “meninas” é a fotografia, e elas se orgulham em mostrar os inúmeros álbuns e as fotos nas paredes para cada visitante. Cenas que alegram a vida sofrida.
“Tem muito afeto e cuidado envolvido e elas são resistência”, resume Carla, que também já conseguiu promover reencontros com familiares de algumas delas, de realizar o sonho de dona Carminha em conhecer o Rio de Janeiro, de dona Borges que há dois anos reencontrou a família, 27 anos depois da internação, e de dona Marina, de segurar as netas. “A gente ajuda na construção da vida e tem o desafio de fazer valer o direito a ela.”
Uma rede transformadora
No Brasil, ainda existe condição asilar, mas por lei não é permitido que pessoas morem em hospitais.
Os Serviços Residenciais Terapêuticos foram criados pela Portaria 106, de 2000, pelo Ministério da Saúde, dentro do espírito da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216 de 2001), que versa sobre uma nova maneira de cuidar, tratar e garantir os direitos das pessoas com transtornos mentais graves e persistentes. Além disso, uma série de normativas e portarias definem aspectos da atual Rede de Atenção Psicossocial (Raps).
A Raps reúne uma série de equipamentos e possui equipes multiprofissionais que desenvolvem projetos terapêuticos voltados não apenas à reabilitação, mas também à prevenção e reinserção destas pessoas na sociedade. Os serviços residenciais terapêuticos são um destes pontos, e também o único tipo de equipamento de saúde que funciona como moradia.
Essas moradias ou casas inseridas na comunidade são destinadas a cuidar das pessoas com transtornos mentais, egressas de internações psiquiátricas de longa permanência (dois ou mais anos ininterruptos) e que não possuem suporte social ou laços familiares que viabilizem sua inserção social.
A alocação de pessoas nas vagas prioriza acomodar em uma mesma casa pessoas com diferentes perfis de autonomia para atividades da vida diária, de modo a não sobrecarregar a equipe (formada por cuidadores, técnicos de enfermagem e supervisor) e possibilitar a heterogeneidade do convívio entre os moradores. Procura-se também respeitar o critério territorial, em que se dá preferência, quando possível, à proximidade do local anterior de moradia do paciente. Também são levadas em conta questões relacionadas à estrutura das casas tanto no que diz respeito à acessibilidade, ao gênero e ao grupo de moradores já residentes.
Os SRTs têm acompanhamento do Ministério Público Federal e a gestão destas vagas é de competência da Secretaria Municipal da Saúde (SMS). Os recursos para manutenção destas casas vêm do SUS e os moradores também recebem valores do Programa Volta pra Casa (PVC) e ou Benefício de Prestação Continuada (BPC) para sua autonomia.
“Hoje a internação de pacientes em enfermaria de psiquiatria é permitida para tratamento, por um período curto, mas não em condição asilar. Ninguém deve morar em hospitais psiquiátricos; são muitas as interfaces, mas tratar não é trancar”, comenta Camila Bortoluci, assessora técnica da Divisão de Saúde Mental da SMS, que desde 2016 atua nos processos de desinstitucionalização na rede municipal. “Temos uma dívida histórica com essas pessoas e hoje elas são atendidas com uma rede completa e estruturada, que atende o indivíduo em sua integralidade”, salienta.
São Paulo é destaque
Camila ressalta que o município de São Paulo é reconhecido em âmbito federal como uma das cidades do Brasil que mais realizou ações de desinternação de pacientes de hospitais psiquiátricos que estavam em condição de “moradores”.
“A reabilitação psicossocial das pessoas que vivenciaram longas internações está relacionada com a operacionalização de diretrizes que favoreçam o trabalho em uma rede de saúde ampla, acessível e integral, envolvendo equipamentos de todos os níveis de complexidade e implicando no compromisso do cuidado os entes intersecretariais: assistência e desenvolvimento social, cultura, educação, esportes, justiça, trabalho e emprego, entre outros”, pontua a assessora técnica.
Ela acrescenta que, no caso do SRT, o papel da rede é apoiar as iniciativas necessárias o serviço encontre todas as condições possíveis de realizar seu propósito, de ser um espaço de moradia, que garanta o convívio social, a reabilitação psicossocial e o resgate da cidadania da pessoa, promovendo laços afetivos, reinserção no espaço da cidade e a reconstrução de novos vínculos. “Os SRTs são casas muito vivas, que guardam muitas histórias, como a da senhora que passou 30 anos internada no manicômio, e, ao adentrar a residência, perguntou se tinha farinha e açúcar para fazer um bolo.”
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