Secretaria Municipal da Saúde
Qualidade de vida e longevidade com anemia falciforme é a bandeira de paciente atendida na rede municipal

“Uma sobrevivente e militante do autocuidado” é assim que se define a assistente social Sheila Ventura Pereira. Contrariando expectativas, ela completou 46 anos, no dia 10 de junho, nove dias antes do Dia Mundial de Conscientização sobre a Doença Falciforme. A condição, considerada uma das doenças hereditárias mais comuns no mundo, com grande incidência entre pretos e pardos, causa a destruição crônica das células vermelhas do sangue, além de intensas dores ósseas e na barriga, infecções, lesões orgânicas e, em alguns casos, até a morte precoce.
Quem vê o seu sorriso largo de Sheila não imagina sua história. São pelo menos 2.000 internações e duas tentativas de suicídio em momentos muito difíceis. Mas também um tratamento contínuo, muita resistência, resiliência e vontade de viver, e mais ainda de fazer viver outras pessoas.
Sheila perdeu cinco irmãos, ainda crianças, incluindo dois gêmeos. O mais novo tinha 15 dias, e a mais velha, 5 anos. Nos atestados de óbito constaram pneumonia e meningite. A mãe, que carregava o gene da doença sem diagnóstico, morreu aos 36 anos, sete dias antes de Sheila completar 15 anos e atingir a idade máxima estimada pelos médicos para a menina miúda, magricela, mas barriguda, que demorou a andar.
Mutação genética
A doença falciforme ocorre por uma mutação genética, que, em vez de produzir a hemoglobina A, produz uma hemoglobina chamada S. Se uma pessoa recebe um gene do pai e outro gene da mãe, que produzem a hemoglobina S, ela possui um padrão genético chamado SS, causador da anemia falciforme. No entanto, se a pessoa receber de um dos pais o gene para hemoglobina S e do outro o gene para hemoglobina A, ela não terá a doença, e sim o traço falciforme (AS). Portanto, essa pessoa não precisa de tratamento porque a doença não se desenvolverá. Caso tenha filhos ou filhas com outra pessoa que também herdou o traço, existe a possibilidade de ela ter uma criança com anemia falciforme.
“Minha mãe contava que éramos crianças diferentes, magras, com muita febre e que acabavam morrendo. Eu demorei a crescer, só ficava sentada, minha mãe tentava me colocar em pé e eu chorava porque doía. Tinha os pés, os joelhos e braços inchados, abdome distendido e a pele amarelada. No começo, ela achou que era preguiça de bebê. Depois, ela foi percebendo que algo errado mesmo e começou a peregrinação para a investigação”, relembra Sheila.
O primeiro diagnóstico veio como reumatismo, quando ela tinha entre 4 e 5 cinco anos, período também em que começaram os efeitos colaterais dos medicamentos. A confirmação da anemia falciforme veio aos 7 anos, com uma investigação genética feita no Hospital São Paulo, que também constatou a doença na irmã de dois anos e no pai, que na época tinha 39 anos.
Essa irmã, Michele, morreu em 2013, aos 29 anos, por insuficiência renal decorrente da doença. Antes dela, o pai abandonou o tratamento e morreu em novembro de 2012 com pulmões inchados e falência de múltiplos órgãos, aos 54 anos. “Ele cansou da vida de consulta e transfusão de sangue todo mês, dizia: ‘o que tenho não tem cura, então não vou me preocupar’”, lamenta a filha.
Sheila explica que o pai tinha 100% da doença e a mãe o traço falciforme, 50%, logo os filhos teriam 75% de probabilidade de herdarem o problema genético. Hoje, ela ainda tem um irmão, Vasco, que possui o traço e está vivo.
Linha de cuidados permite acompanhamento multidisciplinar
A anemia falciforme se manifesta de forma intensa e dolorosa. “É uma dor como se os ossos estivessem quebrando. Começa nos braços, nas costas e anda... A única coisa que não dói é o fio do cabelo e a analgesia é forte, com morfina”, conta Sheila.
Hoje ela tem controle da doença, por meio da Linha de cuidados em Doença Falciforme na Atenção Básica da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), com consultas regulares com a equipe multidisciplinar do Hospital Municipal Brigadeiro, o que inclui hematologista, oftalmologista, ortopedista, além de acompanhamento odontológico e psicológico na UBS Humaitá, próxima à sua casa, onde também pega medicamentos.
“Tenho que me cuidar. Por conta da doença, tenho osteonecrose (morte de uma parte do osso devido à interrupção do seu suprimento sanguíneo) nos ombros, artrose (doença degenerativa que afeta as cartilagens das articulações) nos quadris, entre outros problemas”, relata a paciente. Ela conta que, para reduzir a carga de medicamentos para a dor, tem buscado alternativas em práticas e terapias como acupuntura, auriculoterapia, ozonioterapia, pilates e também o canabidiol.
“Hoje, quando percebo que a dor vai chegar tomo um banho, faço uma massagem e analgesia para controlar. Coordeno bem a dor, mas tem horas em que perco o controle, fico mais ofegante, com movimentos repetitivos, o corpo dá sinais e criar resistência à dor também é arriscado. Como moro na rua do hospital, se tomo banho, faço esse meu protocolo e a dor persiste, se tem alguma infecção, aí busco ajuda.”
Estes cuidados vieram paulatinamente, nos últimos 20 anos, com o conhecimento da doença. Na infância, no entanto, as dores foram intensas não apenas do ponto de vista físico, mas também psicológico: não suportava ser chamada de “Bezão” na escola, pelo corpo magro e barrigudo; a pele e os olhos amarelados afastavam os colegas e o quadro doentio a levava sempre ao hospital. “Era uma semana em casa, dois meses internada”. Assim, Sheila interrompeu os estudos aos 12 anos; às vésperas de completar 15, perdeu a mãe, que se desdobrava em faxinas e deixava de comer para poder fazer uma festa para a filha.
Compreensão da doença e atuação coletiva
Quando fez 20 anos, em uma internação acompanhada da irmã Michele, elas receberam a visita de voluntários da Aprofe – Saúde da pessoa negra, uma instituição sem fins lucrativos fundada em 1998 por portadores da doença falciforme para contribuir com a qualidade de vida dos pacientes, suporte aos familiares. Hoje, Sheila é coordenadora-geral da Aprofe.
Foi assim, entendendo a doença e reconhecendo a importância de ter e dar esperança de vida, que Sheila “virou a chave” não apenas no seu tratamento, como no auxílio aos demais pacientes com doença falciforme. Foi nesse período, também, que ela retomou os estudos e, mesmo com as internações, conseguiu concluir a faculdade de Serviço Social. O diploma que conquistou aos 36 anos veio ao encontro da missão que abraçou.
Há 20 anos, Sheila teve Henrique Miguel; a gravidez só foi descoberta no sexto mês, durante exames de acompanhamento da sua doença “Foi um susto, um desespero; quando meu filho nasceu eu pesava 43 quilos, quando conseguia mamar, ele caía de cansaço para um lado e eu para o outro. Mas hoje ele pode jogar basquete”, comemora, referindo-se ao fato de Henrique ser um moço de 20 anos, 90 quilos e 1,90m. A felicidade desta mãe também está no fato de hoje, a doença falciforme ser detectada no teste do pezinho e o acompanhamento ser feito todo feito pelo SUS. Após o diagnóstico, o paciente é encaminhado para iniciar o tratamento em um serviço especializado ou centro de referência, com apoio de um hematologista e outros especialistas. No caso de Henrique, o teste do pezinho mostrou que ele possui apenas o traço da doença.
De 2006 a 2012, Sheila foi representante do Estado de São Paulo num grupo de mulheres que participou da elaboração do 1º Manual de Gestantes com Doença Falciforme elaborado pelo Ministério da Saúde. “O nosso acompanhamento médico é por toda a vida, e a vida de uma pessoa com doença falciforme é um eterno recomeço, precisa ser teimoso para continuar”, filosofa ela que, mesmo com dores e cansaço latentes, não abandona a missão de ampliar o acesso aos tratamentos das doenças que afetam a população negra, melhorar a qualidade de vida dessas pessoas e diminuir o preconceito, além de garantir políticas públicas que atendam às necessidades dos negros no Brasil.
“O meu grande desafio hoje é convencer os adolescentes da importância do autocuidado, do autoconhecimento e da adesão ao tratamento, sem preconceitos. Hoje temos vacinas para as doenças, tratamentos para os problemas, estrutura e exames para diagnóstico. Se tivesse tudo isso na minha época, eu estava voando”, diz com o sorriso largo e os olhos brilhando.
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